domingo, 3 de outubro de 2010

O novo ataque de Lula à mídia

Segue abaixo o artigo do Jornalista Alberto Bomblg, a Revista Época.


No tiroteio da campanha eleitoral, o presidente acusa a imprensa de partidarização – e gera uma reação de defesa da liberdade de expressão

ALBERTO BOMBIG

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou sua carreira política na condição de perseguido pela ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Boa parte desse período foi marcada pelo cerceamento à liberdade de expressão, pelo controle da imprensa e pela censura. Desde o fim da ditadura, o Brasil tem vivido num ambiente de plenos direitos civis, independência entre os Poderes e imprensa livre. Nosso arcabouço institucional, ainda que jovem e em constante evolução, permite que sejamos classificados sem titubear como uma das democracias mais vibrantes das Américas.

Foi nesse ambiente que um ex-operário e líder sindical pôde chegar à Presidência da República em 2002. E é nesse ambiente que sua gestão vem sendo investigada pelas autoridades e denunciada em diversos órgãos de imprensa. Tais denúncias atingiram o ápice durante o escândalo do mensalão e, ao longo dos últimos anos, vitimaram ícones petistas como José Dirceu, Antonio Palocci – e, nas últimas semanas, a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra. Os mesmos órgãos da imprensa que investigaram esses petistas também publicaram denúncias contra tucanos (como as suspeitas de superfaturamento nas obras do Rodoanel e do metrô em São Paulo) ou democratas (como os vídeos em que o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda foi flagrado recebendo uma sacola de dinheiro).

MANIFESTO 
O jurista Hélio Bicudo (à esq.), fundador do PT, e o ex-ministro 
da Justiça José Gregori (à dir.) participam de ato nas Arcadas da Faculdade 
de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. “Lula não se preocupa 
mais com a honestidade”, disse Bicudo 
Nenhum governante – de nenhum partido, de nenhuma orientação ideológica – gosta de denúncias contra seu governo, e sua reação mais comum e previsível é pôr a culpa nos mensageiros das más notícias: os veículos que as publicam. Mas não se espera ouvir de um presidente que chegou ao poder pelo voto e que combateu a censura durante a ditadura aquilo que Lula afirmou no último dia 19 em Campinas, São Paulo, num evento da campanha de Dilma Rousseff (PT) à Presidência. Eis as palavras de Lula: “Nós não vamos derrotar só nossos adversários tucanos, vamos derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como partidos políticos e não têm coragem de dizer que têm partidos políticos, que têm candidatos”. Na semana retrasada, em palestra a líderes sindicais na Bahia, o ex-ministro Dirceu, antecessor de Dilma na Casa Civil, dissera que “o problema do Brasil é o monopólio das grandes mídias, o excesso de liberdade e do direito de expressão e da imprensa”.

Incitados por discursos como os de Lula e Dirceu, alguns sindicatos – entre eles, paradoxalmente, o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo – e entidades de classe outrora presentes no combate à censura realizaram na semana passada um ato contra aquilo que qualificaram como “golpismo midiático”. Trata-se, na visão deles, de uma espécie de conspiração entre os vários órgãos de imprensa contra a eleição de Dilma. As denúncias que derrubaram Erenice seriam, segundo essa visão, não uma defesa do interesse público, mas parte dessa conspiração. De acordo com o secretário de comunicação do PT, André Vargas, o encontro não era vinculado ao partido, mas fora convocado por aquilo que ele chamou de “blogueiros independentes” – um conjunto de produtores de conteúdo na internet, quase todos financiados por dinheiro da administração federal, estatais ou autarquias.

Esses são apenas os capítulos mais recentes nas manobras sucessivas do governo Lula para tentar intimidar os meios de comunicação. No primeiro mandato, o governo tentou instituir um Conselho Federal de Jornalismo, que seria responsável por punir “erros da imprensa” – e que, no fundo, funcionaria como um instrumento de censura prévia. Em dezembro do ano passado, patrocinou a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que aprovou 633 propostas, entre elas a criação de um “observatório de conteúdos midiáticos” – outro eufemismo para a censura. “As reiteradas tentativas demonstram que o governo tem um projeto e o persegue metodicamente. Não é, portanto, um projeto de um grupo petista, mas um projeto do governo, dentro do espírito autoritário que predomina em sua visão do papel do Estado”, disse na semana passada, no debate “A democracia ameaçada: restrições à liberdade de expressão”, o colunista do jornal O Globo Merval Pereira, autor do livro O lulismo no poder, lançado nesta semana (leia a resenha na página 142). O debate foi promovido pelo Clube Militar do Rio de Janeiro, uma organização social formada por oficiais das Forças Armadas da ativa e da reserva que, nos tempos da ditadura, era um dos focos de apoio às medidas do regime militar.

O debate não foi o único evento de apoio a uma imprensa livre realizado depois do discurso de Lula em Campinas. Na quarta-feira, juristas lançaram nas Arcadas do Largo São Francisco, onde funciona a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Manifesto em Defesa da Democracia, com críticas ao presidente. Foi esse o palco onde, em 1977, o jurista Goffredo da Silva Telles Júnior (1915-2009) leu sua “Carta aos Brasileiros”, uma das mais relevantes e corajosas manifestações de oposição à tortura, à censura e ao autoritarismo da ditadura. Nela, intelectuais e juristas eminentes condenavam o regime de exceção e exigiam o restabelecimento do estado de direito no país.

Em tudo similar à “Carta aos Brasileiros”, o documento lido nas Arcadas na semana passada tinha entre seus signatários Hélio Bicudo, um dos fundadores do PT. “Na certeza de impunidade, Lula já não se preocupa mais nem mesmo em valorizar a honestidade”, disse ele. “É constrangedor que o presidente não entenda que seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas 24 horas do dia.” Também tomaram parte no evento os ex-ministros da Justiça na gestão Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) José Carlos Dias, Miguel Reale Júnior e José Gregori e o cardeal arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.

Juristas e intelectuais acusam Lula de se comportar como líder partidário

É verdade que, apesar de todas as manobras e discursos contra a imprensa, até o momento não houve por parte do governo nenhuma medida concreta de censura ou cerceamento à liberdade de expressão. Mas nada é tão absurdo quanto os discursos recentes que, aproveitando o contexto da cobertura eleitoral, falam de modo genérico na “mídia golpista”, que conspira contra o presidente e sua gestão.Na essência, a relação da imprensa com o poder se baseia na fiscalização permanente, função que o PT tanto enalteceu quando esteve à frente da oposição. Isso não torna nenhum órgão de imprensa perfeito. A imprensa erra, é verdade. Mas a liberdade deve existir não apenas para aqueles que estão certos, de acordo com essa ou aquela visão de mundo. Deve existir também para quem erra.

Em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, o colunista Eugênio Bucci resumiu a questão de modo exemplar: “A liberdade não foi conquistada apenas para os que ‘informam corretamente’, mas também para os que, na opinião desse ou daquele presidente da República, não informam tão corretamente assim. Se um jornal quiser assumir uma postura militante, de cabo eleitoral histérico, e, mais, se quiser não declarar que faz as vezes de cabo eleitoral, o problema é desse jornal, que se arrisca a perder credibilidade. O problema é dele, só dele, não é do governo (...) Não cabe ao Executivo, ao Legislativo ou ao Judiciário definir o que é ‘informação correta’. Isso é prerrogativa do cidadão e da sociedade. Que setores da sociedade protestem contra esse ou aquele jornal faz parte da vida democrática. Às vezes, é bom. Pode ser profilático. Agora, que o governo emule, patrocine ou encoraje esses movimentos é no mínimo temerário”.

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